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O Velho e o Novo

Em o Velho Testamento, na Bíblia, que é, essencialmente, a história do povo judeu, há 613 mandamentos, distribuídos nos cinco primeiros livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

248 são positivos – o que fazer.
365 são negativos – o que não fazer.

Embora atribuídos a Moisés, em grande parte foram registrados ao longo dos séculos, em princípio na tradição oral, depois por escrito, com uma particularidade: ao serem
redigidos, os escribas neles aplicavam uma espécie de selo divino, como se fosse o próprio Jeová, o deus judeu, a ditar as normas.

Havia orientações inteligentes, outras ingênuas; fantasiosas e racionais; bem e mal-intencionadas, refletindo os interesses de cada época e os humores daqueles que as redigiam.

Surpreendente observar religiosos defendendo com veemência a ideia de que nesses textos estariam a palavra de Deus e os primórdios da Criação.

Temos a impressão de que não leram ou esqueceram-se de passá-los pelo crivo da razão, aceitando a fantasia como realidade, o mitológico como histórico. Começa com a suposição de que a Terra teria sido criada há perto de quatro mil anos, segundo a cronologia bíblica. Semelhante revelação contraria a tese científica, suficientementecomprovada: a Terra tem perto de quatro bilhões e quinhentos milhões de anos. O próprio Homem, conforme demonstram os estudos antropológicos, surgiu a cerca de um milhão de anos.

O mesmo ocorre em relação aos 613 mandamentos, muitos decididamente humanos, nada divinos. Os que veem ali a palavra de Deus certamente não os analisaram à luz da razão.

As proibições eram numerosas. Terríveis as sanções. Sentenciavam com prodigalidade, sem nenhum constrangimento, a pena de morte, a contradizer o não matarás, preceito básico que o próprio Moisés psicografou no Monte Sinai, ao compor a Revelação da Justiça, contida nos Dez Mandamentos. Estes, sim, de inspiração divina, mostram ao Homem o que não deve fazer. Alguns exemplos:

O descanso no sábado, o dia consagrado ao Senhor, é obrigatório. Quem se atrever a realizar qualquer tarefa será condenado à morte. Há o episódio de um homem condenado ao apedrejamento porque estava cometendo o crime de apanhar lenha num sábado (Números, 15:32-36).

Havia rigorosa orientação quanto ao sangue dos animais:

Também, qualquer homem dos filhos de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam entre eles, que caçar um animal selvagem ou uma ave própria para comer, derramará o seu sangue, e o cobrirá com pó, porque a vida de toda criatura é o seu sangue. Por isso eu disse aos filhos de Israel: Não comereis o sangue de nenhuma carne, porque a vida de toda carne é o seu sangue. Qualquer que o comer será eliminado (Levítico, 17:13-14).

Essa orientação, tomada ao pé da letra, induz religiosos a rejeitarem transfusões de sangue, mesmo para salvar uma vida.

Quando um homem amaldiçoar a seu pai ou a sua mãe, certamente será morto (Levítico, 20:9).

Se um homem cometer adultério com a mulher de seu próximo,ambos, o adúltero e a adúltera, certamente serão mortos (Levítico, 20:10).

Se também um homem dormir com outro homem, como se fosse com mulher, ambos fizeram abominação. Certamente serão mortos, e o seu sangue será sobre eles. (Levítico, 20:13).

Se um homem desposar ao mesmo tempo uma mulher e a mãe dela, é maldade. A ele e a elas queimarão com fogo, para que não haja maldade no meio de vós (Levítico, 20:14).

Aquele que blasfemar o nome do Senhor, certamente será morto. Toda a congregação o apedrejará. Quer seja estrangeiro, quer natural, blasfemando o nome do Senhor,
será morto (Levítico, 24:16).

O filho rebelde será morto por apedrejamento (Deuteronômio, 21:18-21).

Quando, pois, algum homem ou mulher em si tiver um espírito de necromancia ou espírito de advinhação, certamente morrerão; serão apedrejados; o seu sangue será sobre eles. (Levítico, 20:27).

Espiritismo, naquele tempo, nem pensar!

Pessoas com defeitos físicos, coxo, desfigurado ou deformado, pé quebrado ou mão quebrada, corcunda, anão, defeito nos olhos, sarna, impinges, testículos esmagados, não poderão aproximar-se do santuário, no culto, a fim de não profaná-lo (Levítico, 21:18-24).

Os judeus envolviam-se tanto com esses mandamentos, sob rigoroso controle dos sacerdotes, que a vida ficava complicada, cheia de situações de impureza, com múltiplos rituais de purificação. Imaginemos o trabalho até mesmo para saber o que se podia ou não fazer.

Em suas pregações, Jesus aboliu muitos desses mandamentos, por absurdos, com o que entrava constantemente em atrito com as classes religiosas dominantes. A principal razão pela qual foi condenado à cruz foi exatamente o desassombro com que enfrentava os senhores do Templo nesse particular.

É exemplar a mudança de atitude que Ele orienta em o Sermão da Montanha, quando fala sobre a pena de talião:

Ouvistes o que foi dito aos antigos: olho por olho, dente por dente.

Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau. Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. E se alguém quiser demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes (Mateus, 5:38-42).

Simplesmente estava explicando que não devemos reagir ao mal com o mal, o que tenderá a perpetuá-lo. Só o bem elimina o mal. Aos sábados o Mestre viajava, curava, ensinava, atendia o povo. Aos fariseus que o criticavam, explicava:

O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado (Marcos, 2:27).

Diga-se de passagem, na civilização ocidental o sábado foi substituído pelo domingo, quando se comemora a suposta ressurreição de Jesus. A intenção era boa, dar descanso ao trabalhador, um princípio de legislação trabalhista, mas se nesse dia não pudermos fazer absolutamente nada, melhor não tê-lo.

Como explica Jesus, o descanso semanal é para nos ajudar, não para atrapalhar, impondo restrições absurdas. Reclamavam sacerdotes e fariseus que seus discípulos não se submetiam a rituais de purificação antes das refeições. Jesus replicava, com a sabedoria de sempre:

O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem (Mateus 15:11).

Explicaria em seguida aos discípulos:

Mas o que sai da boca procede do coração, e isso contamina o homem. Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, prostituição, furtos,
falsos testemunhos e blasfêmias (Mateus, 15:18-19).

Mais longe foi Jesus, certa feita em que um doutor da Lei perguntou-lhe:

– Mestre, qual o grande mandamento da lei?

Jesus lhe respondeu:

– Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito. Este o maior e o primeiro mandamento. E aqui está o segundo, que é semelhante ao primeiro: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Toda a lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos (Mateus, 22:36-40).

Jesus reportava-se a dois mandamentos, dos 613 contidos no Velho Testamento:

Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua força (Deuteronômio, 6:5).

[...] amarás o teu próximo como a ti mesmo (Levítico, 19:18).

Deixa bem claro que esses dois mandamentos sintetizam o que há de melhor na Lei e nos Profetas, ou no Velho Testamento. Quase toda a legislação mosaica, usando um termo atual, era datada, isto é, servia para aqueles tempos recuados. De caráter universal e eterno é a orientação de que nossa estabilidade íntima, nosso equilíbrio, a capacidade de sermos felizes, dependem de nosso empenho por amarmos a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.

Neles sintetiza-se o que Deus espera de nós.


Richard Simonetti
Revista Reformador - Março de 2011
Publicado em 27/02/2014.