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Água Viva

O Mestre divino, ao passar pela Samaria, assenta-se junto à fonte de
Jacó. Pede a uma mulher que lá está que lhe dê de beber.

No capítulo quatro do Evangelho de João, narra-se uma intrigante passagemda vida de Jesus.

O Mestre divino, ao passar pela Samaria, assenta-se junto à fonte de Jacó. Pede a uma mulher que lá está que lhe dê de beber. A mulher fica escandalizada pelo fato de um judeu dirigir-lhe a palavra. Jesus responde que, se soubesse com quem falava, ela é que lhe pediria água viva. Ante a incompreensão da interlocutora, ressalta que quem bebe da águaviva nunca mais tem sede.

Segundo esta narrativa, a mulher ainda demonstra dúvida a respeito de qual seria o melhor local para adorar a Deus. Ao que o Cristo lhe responde que Deus deve ser adoradoem espírito e verdade.

Essa passagem é um tanto hermética e comporta variadas leituras. Aliás, é sempre temerário pretender identificar a única ou melhor interpretação de um dito ou ensino de Jesus. Nesse sentido, convém refletir sobre a lição doapóstolo Pedro: “Sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação” (II Pedro, 1:20), seguramente traduz a extrema riqueza dos ensinamentos evangélicos, sobre cujo teor o homem pode se debruçar reiteradas vezes e sempre aprender algo novo.

No texto de que se trata, uma das possíveis leituras é que a água viva refere-se a uma nova forma de compreensão da divindade. Até o advento do Cristo, vigorava a ideia de um Deus dos exércitos, que precisava ser temido. Segundo o entendimento corrente à época, Ele se encolerizava, castigava terrivelmente e devia ser agradado e aplacado. Jesus inovou o pensamento religioso ao apresentar ao mundo um Deus amoroso, ao qual chamava de Pai. Não se tinha mais um soberano terrível no comando do universo. Agora já havia um pai cheio de amor e infinito emseus cuidados.

Uma relação saudável com a divindade constitui poderoso instrumento para que o homem atravesse as provas e vicissitudes da vida com o necessário equilíbrio. Não se defende a impossibilidade de se viver retamente sem a fé religiosa, pois são muitos os que se afirmam ateus e são cidadãos honrados e solidários. Contudo, essa fé, quando profunda e bem refletida, fornece recursos superiores de sucesso ao Espíritoem sua rota evolutiva.

Nessa linha, a seguinte lição contida em O evangelho segundo o espiritismo, capítulo 11, item 13,confirma tal assertiva:

[...] Na verdade, impulsos generosos se vos depararão, mesmo entre os que nenhuma religião têm; porém, essa caridade austera, que só com abnegação se pratica, com um constante sacrifício de todo interesse egoístico, somente a fé pode inspirá-la, porquanto só ela dá se possa carregar com coragem e perseverançaa cruz da vida terrena.

O Espírito André Luiz, por meio da psicografia de Francisco Cândido Xavier, também assevera em Missionários da luz, capítuloquatro:

[...] Desde o primeiro dia de razão na mente humana, a ideia de Deus criou princípios religiosos, sugerindo-nos as regrasde bem-viver. [...]

Na mesma toada, em O evangelho segundo o espiritismo, capítulo 19, item 11, a lição do Espírito José:

Inspiração divina, a fé desperta todos os instintos nobres que encaminham o homem para o bem. É a base da regeneração.[...]

O homem deve encontrar em sua fé recursos para cumprir o papel que lhe cabe num mundo em constante mutação, no qual ele é desafiado a cada instante. A religiosidade, em seu sentido mais amplo, não se cinge a algumas práticas formalísticas sem maiores consequências. Ela pacifica, fortalece e orienta na vivência do bem, por entre as naturais dificuldades do caminho humano. Entretanto, de modo curioso, a humanidade demonstra certa tendência
a perverter ou amesquinhar a ideia de Deus, servindo-se dela para justificar o injustificável:promover guerras e intolerância.

Certamente, foi por essa razão que o Espírito de Verdade, em uma admirável mensagem, na qual faz um resumoda Doutrina Espírita, afirma:

[...] O Espiritismo, como o fez antigamente a minha palavra, tem de lembrar aos incrédulos que acima deles reina a imutável verdade: o Deus bom, o Deus grande, que faz germinem as plantas e se levantem asondas. [...]

Se o Espiritismo tem de relembrar esse aspecto capital da mensagem do Cristo, é porque ele foi esquecido ou não foi devidamenteassimilado.

Em O livro dos espíritos, ao tratar das leis morais, apresentadas como um roteiro de felicidade, Allan Kardec principia por minudenciar a lei de adoração, evidenciando que ela constitui a base de todas as outras. Tais leis são encadeadas de forma lógica, de modo que à lei de adoração segue-se a do trabalho, sinalizando que à adoração deve seguir imediatamente a ação profícua. Anote-se que, na passagem evangélica em estudo, Jesus assenta
que Deus deve ser adorado em espírito e verdade, o que certamente inspira a concepção espíritada divindade.

Aliás, cautelosamente, o Espiritismo cuida logo de assentar, emA gênese (capítulo 2, item 8):

Não é dado ao homem sondar a natureza íntima de Deus. Para compreendê-lo, ainda nos falta um sentido próprio que só se adquire por meio da completa depuraçãodo Espírito. [...]

Ou seja, até que se torne completamente puro, o Espírito carece do sentido que permite a integral compreensão do divino, de modo que seus raciocínios nessa seara sempre devem ser humildes e cautelosos. Caso contrário, corre o risco de se assemelhar a um cego a discutir a diferença entre as variadas cores.

Feito esse alerta, temos que a adoração em espírito se contrapõe à adoração feita segundo critérios materiais, tocada pelas convenções humanas e implica na desnecessidade de fórmulas, rituais, posições do corpo, ladainhas, locais, horários predeterminados e intermediários. A vida humana, em todos os seus aspectos, deve ser um ato de adoração. Com efeito, a adoração deve propiciar a gradual aproximação das crenças individuais com a verdade
imperecível, universal e a disposição para abandonar concepções que se revelem errôneas. Pressupõehumildade, flexibilidade e ânimo para o estudo e a reflexão.

O Espiritismo apresenta a divindade despida de caracteres antropomórficos, como uma inteligência cósmica e suprema, que rege o mundo a partir de leis perfeitas e imutáveis, plenas de justiça e misericórdia. Com isso, faculta o
gradual desenvolvimento da adoraçãoem espírito e verdade.

Como Deus não possui os vícios e as paixões humanas, tem-se a completa inocuidade de tentar agradá-lo segundo as praxes adotadas em relação a personalidades humanas, como oferendas materiais, reverências, genuflexões etc.
Ao contrário, o melhor modo de agradá-lo é tentar entender e cumprir o papel por Ele destinado a cada homem, pela vivência digna e bondosa, pela busca constante do progresso próprio e do mundo em que se habita. É a adoração em espírito, desapegada de rituais,horários e convenções.

Haja vista o mundo ser regido por leis, surge a necessidade de tentar entendê-las, pelo estudo metódico e constante, a fim de melhor respeitá-las e praticá-las. Eis aí, portanto, a adoração em verdade, com a disposição de abandonar entendimentos equivocados e de aproximar as próprias crenças o mais possível da verdade universal, por ora ainda muito distante das possibilidadeshumanas.

Importa observar que a adoração em espírito e verdade constitui a fórmula da água viva, com o condão de saciar a sede para sempre. Não é algo meramente cerebrino, pois deve propiciar paz e consolo ante as peripécias do jornadearevolutivo.

O hábito de meditar sobre os atributos da divindade (O livro dos espíritos, questões 10 a 13) logra fornecer essa paz e esse consolo, que fortalecem a alma nas naturais agruras da vida. Entre outros atributos, Deus é onipotente,
soberanamente sábio, justo e bom. Se Ele permite dada vivência, é porque isso se insere em um contexto superior de aperfeiçoamento, com vistas ao mais alto bem das criaturas envolvidas. Mesmo quando a fragilidade humana não permita uma compreensão correta do contexto, a fé deve munir a criatura de forças e esperanças bastantes paravencer.

Nesse contexto, as necessidades e agruras materiais passam a ser vistas sob um enfoque positivo. Elas não são um castigo, mas uma tarefa e uma oportunidade. A Divindade sábia e cheia de compaixão deseja que o bem se instaure no universo e almeja a transformação de seus filhos e a salvação de absolutamente todos. Para tanto, faculta-lhes trabalhos e tarefas, a fim de que cresçam, aprendam e se libertem de vícios. Não tem favoritos e nem perseguidos, pois todos são irmãos e se encaminhampara a mais alta felicidade.

A certeza de que Deus, infinitamente poderoso, sábio, justo e bondoso, rege os destinos humanos com extremo carinho traz esperança, paz e forças para tudo suportar e vencer. Não é preciso temer o futuro e o destino, pois a vida se encaminha para o bem supremo, ainda que por vezes de forma pouco compreensível no imediatismo das lutasterrenas.

O relevante é amar o semelhante e instruir-se na compreensão da vida, a fim de ser um agente do progresso que gradualmente seinstaura no mundo.

Trata-se da água viva, que propicia a acomodação dos desejos humanos aos propósitos divinos, em um belíssimo processo de pacificação interior.

 

Dineu de Paula
Revista Reformador - Novembro/2013
Publicado em 02/11/2014