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Lei de adoração

Adorar, no sentido religioso tradicional, é o mesmo que venerar ou
prestar culto a alguém ou a algo, no âmbito dos ofícios ou
cerimônias religiosas

No belíssimo romance espírita Cinquenta Anos Depois, que retrata alguns episódios ocorridos no início do século II da Era Cristã, obra de autoria do Espírito Emmanuel, psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier (1910-2002), cujo centenário de nascimento está sendo merecidamente comemorado neste ano, um dos personagens, o nobre ancião e patrício romano, Cneio Lucius, conduz sua amada neta, Célia – cujos conhecimentos prematuros em matéria de religião e filosofia assombravam a todos – aos templos romanos de Júpiter Capitolino e de Serápis para, segundo os costumes então vigentes, oferecer sacrifícios aos deuses, conforme a ritualística instituída pelos sacerdotes flamíneos.

Esta iniciativa do avô foi tomada, a pedido do pai da jovem, o censor Helvídio Lucius, numa tentativa de demovê-la da simpatia que nutria pelas ideias de Jesus, acidentalmente assimiladas dos escravos da casa, ideias essas que se propagavam no Império Romano e eram severamente reprimidas, por ordem dos administradores que, perplexos ante a coragem dos cristãos que enfrentavam a morte nos circos sanguinolentos, cantando hosanas ao Senhor, talvez interpretassem a nova crença como uma afronta à autoridade romana e aos valores culturais que lhes eram mais caros.

Lendo esta passagem, como tantas outras da clássica “Série Emmanuel”, detectamos nesses rituais, tão comuns naquela época, atos de adoração. A palavra “adorar”, no sentido vulgar, significa gostar muito, ter paixão extrema por pessoas, animais e coisas. No sentido religioso tradicional, é o mesmo que venerar ou prestar culto a alguém ou a algo, no âmbito dos ofícios ou cerimônias religiosas, tal como descrito nos aludidos romances.

Do ponto de vista espírita, não é este, porém, o conceito emprestado à palavra “adoração”, como se verá.

A crença na divindade é inata no ser humano, pois, tendo sido criados por Deus, todos cultivamos, no âmago, ainda que não tenhamos qualquer tipo de orientação religiosa, a vaga intuição da existência de um ser superior, do qual dependemos.

Atrasados em moralidade, os homens dos tempos recuados praticavam a adoração por meio de sacrifícios e coisas materiais. Temerosos da inclemência da natureza, com suas tragédias sociais, enchentes, secas e pragas, que atribuíam a deuses vingativos, para agradá-los, de modo a aplacar a suposta “ira” das divindades, ofereciam o que possuíam de mais precioso.

Ainda na atualidade, encontramos formas primitivas de se adorar a Deus, por meio de rituais semelhantes aos dos pagãos, com a utilização de símbolos e imagens. Não raro, indivíduos encarcerados nos antigos atavismos religiosos comercializam com o mundo espiritual, em troca de favores pessoais, tais como auxílios financeiros, casamentos, entre outros interesses terrenos imediatistas. Por seu lado, instituições religiosas há que não têm interesse de libertar seus profitentes dessas nefastas ilusões. Pelo contrário, incentivam-nos, porque mantê-los alienados é muito lucrativo. Naturalmente que os Espíritos superiores jamais endossariam esses hábitos, porque denotam escravização às paixões inferiores e aos interesses materiais.

De acordo com os ensinamentos dos mentores da Codificação, exarados na primeira obra básica, a partir da questão 649, a adoração consiste “na elevação do pensamento a Deus”. Toda vez que meditamos, que elevamos o pensamento a Deus, em prece, louvando, pedindo ou agradecendo, independentemente de atos exteriores, estamos, consciente ou inconscientemente, praticando a verdadeira adoração. O Espírito Emmanuel amplia o entendimento desta questão, esclarecendo:

– Todos os Espíritos, reencarnando no planeta, trazem consigo a ideia de Deus, identificando-se de modo geral nesse sagrado princípio. Os cultos terrestres, porém, são exteriorizações desse princípio divino, dentro do mundo convencional, depreendendo-se daí que a Verdade é uma só, e que as seitas terrestres são materiais de experiência e de evolução, dependendo a preferência de cada um do estado evolutivo em que se encontre no aprendizado da existência humana, e salientando-se que a escolha está sempre de pleno acordo com o seu estado íntimo, seja na viciosa tendência de repousar nas ilusões do culto externo, seja, pelo esforço sincero de evoluir, na pesquisa incessante da edificação divina.

A legítima adoração desenvolve no homem a própria espiritualidade, promove o autoconhecimento e a sublimação dos sentimentos que o aproximam de Deus, ao mesmo tempo em que granjeia a humildade, abrindo os portais do progresso intelecto-moral. A adoração, em sua essência, não se ensina, pois é um sentimento inato como aquele que se tem da Divindade. No âmago, o homem tem consciência de que é um ser dependente do Criador, o que o faz dobrar-se ante a proteção daquele que tudo pode. Este sentimento geralmente se revela diante de um perigo iminente, em que, por força da lei de conservação, o homem direciona todas as suas energias para se livrar do evento que ameaça a sua sobrevivência.

Não sem razão os orientadores da Codificação disseram que “jamais houve povos ateus”, porquanto “todos compreendem que acima deles há um Ser supremo”.

A grande evidência de que a adoração é uma lei natural está no fato de a encontrarmos entre todos os povos de todas as épocas, ainda que manifestada por meio de diferentes formas. A adoração autêntica prescinde de manifestações exteriores, contudo, há pessoas que ainda precisam de tais arrimos, visto que se sentem mais seguras assim, externando, com isso, que ainda não se libertaram dos hábitos arraigados que muitas vezes trazem de existências físicas anteriores.

Todavia, a adoração exterior é válida, se for feita de coração, isto é, se não for apenas uma encenação para impressionar os outros, sobretudo quando é realizada por pessoas que têm conduta censurável, a qual não se coaduna com os genuínos valores morais que tentam representar por meio de uma falsa adoração.

É óbvio que o Criador não desaprova as cerimônias praticadas pelos homens imbuídos de sincera devoção, porém, a melhor maneira de honrá-lo é dedicar-se ao trabalho da caridade, pois Deus se importa mais com o fundo do que com a forma. A simples oração sincera e fervorosa vale muito mais, às vistas dele, do que todas as oferendas que possamos dedicar-lhe.

Vinícius sintetiza bem em que consiste a adoração em espírito e verdade:

Adorar a Deus em espírito e verdade é tornar-se progressivamente melhor, opondo embargos às expansões do egoísmo, cultivando a mente e o coração. [...]

Adorar a Deus em espírito e verdade é servir à Humanidade, é querer o bem de todos os homens, é renunciar à sua personalidade em favor da coletividade.

Adorar a Deus em espírito e verdade é deixar de ser judeu ou samaritano, fariseu ou saduceu, para ser cristão com o Cristo, consoante estas palavras suas:

“Em vos amardes uns aos outros, todos conhecerão que sois meus discípulos”.

De outro lado, procede mal ou falta com a caridade quem ridiculariza as crenças alheias por discordar da forma como é manifestada, assim como aquele que finge praticar uma religião, na qual não acredita, apenas para agradar às pessoas.

E o que dizer daqueles que se dedicam exclusivamente à vida contemplativa e não fazem mal a ninguém? Ensinam os benfeitores espirituais que a missão do homem inteligente não é apenas pensar em si mesmo, mas também nos outros, deveres que incumbem a todos os que vivem em sociedade. O homem que se isola, gastando o seu tempo apenas em meditar, nada faz de meritório perante Deus, uma vez que, deixando de fazer o bem, já pratica o mal, pois seu gesto não aproveita à Humanidade, e estará sujeito ao jugo da própria consciência por ter levado uma vida inútil.

Partindo da premissa de que a adoração se faz em espírito e em verdade, somos levados a concluir que o meio mais eficaz de cultuar a Deus é servir aos semelhantes, é contribuir para a melhoria do mundo a partir de nossa própria transformação íntima, que encontra instrumentos poderosos no estudo das leis divinas e no trabalho em favor do próximo.

 

Christiano Torchi
Revista Reformador - Julho - 2010
Republicado em 08/06/2015